Mística da luta por direitos e como se constrói militantes. Por frei Gilvander Moreira[1]
Mulheres indígenas ocuparam Brasília em defesa dos seus direitos. Foto: Tiago Miotto/CimiDesde a publicação do livro Um discurso sobre as Ciências (1995), o pensador Boaventura de
Sousa Santos aponta para a necessidade de um Pensamento Pós-Abissal por ser o
rompimento com o sentimento e a lógica de colônia. De acordo com Boaventura
Santos, precisamos criar as condições científicas e objetivas das mudanças
sociais necessárias em um mundo que não pode se transformar em Europa e muito
menos em Estados Unidos ou Japão. A luta pela terra no campo e na cidade é
imprescindível para se interromper a espiral de violência social e um círculo
vicioso mostrado por Boaventura: “Direitos
humanos são violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para
garantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome de sua preservação.
Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal como metafórico”
(SANTOS, 2010, p. 44).
A luta pela terra no campo e na cidade, que se
pretende emancipatória, precisa fomentar a luta pela construção de uma
sociedade justa e solidária, de todos e todas, no campo e na cidade, e, assim,
colocar em luta coletiva de forma sincronizada, em unidade, os/as camponeses/as
e a classe trabalhadora da cidade. Só assim se fortalecerá o processo de
emancipação humana e social tanto dos camponeses e camponesas quanto dos/as
trabalhadores/as cada vez mais superexplorados/as na cidade, na fábrica e nas
ruas, com a terceirização e uberização da economia, inclusive.
Nos processos de nucleação das famílias na luta pela
terra, seja no acampamento ou na ocupação urbana, seja no assentamento ou em
uma comunidade urbana periférica, delegando tarefas a todos/as, discutindo tudo
em reuniões e assembleias, os Sem Terra e os Sem Teto promovem pequenas
emancipações, necessárias para sustentar as médias e grandes emancipações.
Nesse processo, “quem nunca abria a boca,
de repente vira locutor da rádio do acampamento; quem se dizia tímido vira
referência de negociador com o governo; quem era considerado o fofoqueiro da
comunidade de origem vira articulador das propostas na base [...]”
(CALDART, 2012, p. 184). Nas lutas concretas por terra, moradia e por território
e por outros direitos, cegueiras são curadas, sujeitos militantes são
construídos.
Essa emancipação de base ocorre enquanto se vivencia
na prática democracia real de base. Nas reuniões, nas assembleias, nas lutas
coletivas, em trabalhos domésticos feitos também pelos companheiros e na
convivência do dia a dia aprende-se que para poder participar é preciso saber
ouvir, respeitar a opinião dos/as companheiros/as, da/o esposa/a, dos filhos e
das filhas, dos Sem Terrinha, das crianças Sem Teto e dos que se somam à luta
coletiva. E se aprende que o que é construído pelo coletivo, com a participação
de todos/as, será mais facilmente adotado por todos/as que se sentirão
corresponsáveis pela execução do que for planejado e decidido conjuntamente.
Vital também como pedagogia de emancipação humana é “o exercício dos princípios da direção
coletiva, da distribuição de tarefas, da autocrítica permanente, da autonomia
política...; ao cultivo de valores humanistas e de uma mística que forma as
pessoas para o exercício da utopia” (CALDART, 2012, p. 207).
Sem mística emancipatória não há luta pela terra, por
moradia e por território que se torne emancipatória, mas não basta qualquer
tipo de mística. É necessário mística libertadora[2]
que mexa com as entranhas dos Sem Terra, dos Sem Teto, dos Povos Originários e
das Comunidades Tradicionais como tempero da luta, sal na comida, fermento na
massa, luz nas trevas, e paixão que anime as/os militantes na luta pela terra, pela
moradia, por território, porque alimenta a índole revolucionária das/dos
combatentes transformando todas/os em cativadoras/res de novas/os lutadores/as.
Nesse sentido, diz Peloso, ao afirmar que a mística é a alma do combatente: “Há
pessoas e grupos que vivem tão fortemente as suas convicções que passam a semear
um entusiasmo contagiante. Essas pessoas caminham na vida com tanta esperança
que parecem enxergar a certeza da vitória. E com o tempo, elas vão ficando mais
destemidas, mais disponíveis e mais carinhosas. Mesmo no meio da maior
escuridão elas continuam anunciando e celebrando a chegada da aurora. Que força
teimosa é essa que perturba o ódio dos inimigos e envergonha a mesquinhez dos
que se dizem companheiros?” (PELOSO, 1994, p. 3).
O fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, no
banco dos réus, no Fórum Lafaiete, em Belo Horizonte, MG, dia 11 de outubro de
2013, ao ser interrogado pelo juiz por que comandou pessoalmente um grupo de
jagunços na realização do massacre de cinco Sem Terra em Felisburgo, no Vale do
Jequitinhonha, MG, respondeu: “Eles tinham
invadido minhas terras, mas as cantorias dos Sem Terra estavam me irritando há
dois anos. Eu não tolerava mais aquela cantoria dos Sem Terra”. Também no
mesmo sentido um espião das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no filme O anel de tucum, informa ao seu
mandante: “Eles (o povo das CEBs) têm
sempre aquela cantoria maldita e estão sempre animados comemorando não sei o
quê” (ANDRÉ, espião no filme O anel
de tucum).[3]
Para os opressores é difícil entender esta luta dinâmica e grandiosa por direitos que vai muito além do que seus olhos cegados pela ideologia dominante veem, porque tem a ver com alma, com vida, e por isso, vitoriosa!
Referências
CALDART,
Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
PELOSO,
Ranulfo. A força que anima os militantes.
São Paulo: MST, 1994. Disponível em http://www.mstemdados.org/sites/default/files/A%20for%C3%A7a%20que%20anima%20os%20militantes.pdf
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.
11/05/2023
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – “Só
com organização e luta coletiva se impede despejo”. Ocupação Pingo D’água, de
Betim/MG. Vídeo 14
2 -
ACAMPAMENTO PÁTRIA LIVRE/S.JOAQUIM DE BICAS,MG: ORGANIZAÇÃO, CONSCIÊNCIA SOCIAL
E ECOLÓGICA/6ª Parte
3 - Mística e espiritualidade libertadora na Pré-Jornada da Agroecologia de MG, na Teia dos Povos de MG
4 - Dep.
Célia Xakriabá (PSOL/MG) na UFMG: “Indigenizar a cidade e a Política.
Aquilombar, sim! Mística!
5 - Mística
indígena na luta contra despejo no Jd. Ibirité, Ibirité/MG. MRS demoliu 36
casas. Injustiça!
6 - Mística
no Encontro de Povos no Assentamento Padre Jésus, Espera Feliz, MG. Mayô. Vídeo
2. 28/6/2019
7 - 4
anos da Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte: organização, Luta e Resistência.
07/10/17
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Sobre “a religiosidade e a mística nas vivências dos
sem terra” confira SILVA, Rita de Cássia Curvelo. Práxis política no MST:
produção de saberes e de sabedoria. Tese (Doutorado em Educação). João Pessoa: UFPB, 2008, p. 67-70.
[3]
Cf. O anel de tucum. Filme dirigido por Conrado Berning. São Paulo: Verbo
Filmes, 1994. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=55blfFGeyPc
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