Ocupação Fábio Alves, 750 famílias: despejar ou regularizar? Por frei Gilvander Moreira[1]

A Ocupação-Comunidade
Prof. Fábio Alves, no Barreiro, em Belo Horizonte, MG, com mais de quatro anos
de luta, já com 750 famílias, com mais de 700 casas construídas em regime de
autoconstrução, nas noites após trabalharem para outros o dia inteiro, e nos
finais de semana, em mutirão, com a ajuda de parentes e amigos/as, pegando
empréstimo para comprar materiais de construção. No momento da ocupação, o
terreno estava totalmente abandonado e ocioso, propriedade que não cumpria
função social. O local estava cheio de lixo e entulho. Assim, a decisão
judicial que determina a reintegrar na posse a empresa R.S. Morizono é injusta
e inconstitucional, pois “Não existe um centímetro de terra no Brasil
que não deva cumprir uma função social” (Jacques Távora Alfonsin).
No Brasil, sob os ditames da Constituição de 1988, proprietário de terra
precisa exercer função social da sua propriedade, além de ter escritura de
compra do imóvel, registro em cartório e demonstrar que está na posse de sua
propriedade. Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (2005), no
artigo Função Social da Propriedade:
dimensões ambiental e trabalhista, asseveram: “A propriedade não é mais direito absoluto. Com efeito, embora parte da
doutrina e jurisprudência, de forma totalmente contrária ao sistema posto,
relute em negar proteção absoluta ao direito de propriedade, o fato é que o
ordenamento constitucional e infraconstitucional veem que pesa sobre a
propriedade uma hipoteca social” (JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 13). A esse propósito nos referimos à
decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI[2]
nº 2213, que diz: “O direito de
propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave
hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é
inerente (CF, art. 5º, XXIII), a propriedade deixa de existir”.
De forma contundente,
o jurista Eros Roberto Grau[3]
afirma que a propriedade que não cumpre a função social não existe e, como
consequência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento, e não de
desapropriação. Textualmente, pondera Eros Grau: “[...] a propriedade dotada de função social, que não esteja a
cumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ou seja, já não haverá
mais fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular do bem
(propriedade) que não está a cumprir sua função social. Em outros termos, já
não há mais, no caso, bem que possa, juridicamente, ser objeto de direito de
propriedade [...] não há, na hipótese de propriedade que não cumpre sua função
social “propriedade” desapropriável. Pois é evidente que só se pode
desapropriar a propriedade; onde ela não existe, não há o que desapropriar”
(GRAU, 1999, p. 316).
Na mesma linha, de
forma incisiva, o jurista italiano Pietro
Perlingieri afirma que o proprietário “(...) só recebeu do
ordenamento jurídico aquele direito de propriedade, na medida em que respeite
aquelas obrigações, na medida em que respeite a função social do direito de
propriedade. Se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da
propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento
jurídico, desaparece o direito de propriedade” (PERLINGIERI,
1971, p. 71).
Pelo artigo 186 da
CF/88 toda propriedade deve ter função social e para isto deve cumprir,
simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/ 93,
quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva;
b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode
ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as
relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; d) a exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação
dos trabalhadores no lucro da propriedade.
O Advogado Dr. Elcio Pacheco
demonstrou no processo uma série de ilegalidades no processo. Por exemplo: A
empresa R.S. Morizono Empreendimentos e Participações Ltda apresentou no
processo judicial Contrato Particular de Locação, datado e assinado em 26 de
julho de 2007, pelo qual a suposta autora R.S. MORIZONO aluga o bem para a Rádio
Liberdade. No entanto, a empresa R.S. MORIZONO apresenta junto com a inicial do
processo judicial (id. 53557295), certidão da lavra do 7º Ofício de Registro de
Imóveis de BH, datado de 16/12/2015, com a matrícula 10858, registro de compra
e venda, pelo qual a Radio Liberdade vende para a autora o mesmo imóvel que
alugara em 2007. Como pode a suposta autora ter alugado o bem objeto da lide em
2007 para a Rádio Liberdade, se a Radio Liberdade só lhe vende em 2015 o mesmo
bem? Há muitas outras ilegalidades.
A Ocupação-Comunidade
Prof. Fábio Alves é legítima, pois se trata de luta para efetivar direito
constitucional: direito à moradia. A Ocupação Professor Fábio Alves já é uma
Comunidade consolidada, com mais de 700 casas de alvenaria construídas,
inclusive com Plano Urbanístico construído por professores universitários da
área de Arquitetura e Urbanismo, em conjunto com as famílias: lotes do mesmo
tamanho, ruas e toda a organização espacial de um bairro formal.
Temos
muitos exemplos que podemos citar de casos parecidos com o da Ocupação Prof.
Fábio Alves em que o Estado reconheceu a Comunidade e o despejo não aconteceu.
Por exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso
Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
(TJMG) que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado
bairro em Uberaba, MG. A justiça mineira reconheceu, após tantos anos de
disputa judicial, que diante da existência de inúmeras edificações e moradores
no local, não seria justo decidir pelo despejo das famílias e negou o direito à
reintegração de posse em prevalência do interesse público, social e coletivo. A
decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas e danos a ser paga em
dinheiro. Em voto repleto de doutrinas, teses e precedentes, o ministro do STJ,
Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os princípios da proporcionalidade e da
ponderação como forma de o Judiciário dar aos litígios solução serena e eficiente.
O ministro relator ressaltou que “o imóvel originalmente reivindicado não
existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um
bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão
do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras
famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a
pretexto de fazer justiça.([4])
Plano Urbanístico da Ocupação-Comunidade Prof. Fábio Alves, no Barreiro, em Belo Horizonte, MG, pela professora Raquel Julião, do IFET de Santa Luzia, MG, com participação dos/as moradores/as.
Outro caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP, que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30 famílias na Favela do Pullman. Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'. Segundo o art. 77 do Código Civil, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas – na Favela do Pullman -, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse.”
Tal
julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº
1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte,
registrou que o direito de propriedade deve ter
correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira
a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III,
da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece
o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a
coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em
que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força
policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de
propriedade com violação aos direitos fundamentais.
Enfim,
há várias decisões do STJ que proíbem despejo de comunidades consolidadas como
o caso da Comunidade Prof. Fábio Alves, acompanhada pelo Movimento Luta Popular
e por uma significativa Rede de Apoio. Justo e necessário é que a Câmara de
Vereadores de Belo Horizonte (BH) aprove Projeto de Lei caracterizando toda a
área da Ocupação Fábio Alves como área de interesse Social para fins de
desapropriação para moradia popular das famílias que a ocupam há mais de quatro
anos. Que o prefeito de BH, Fuad Noman, desaproprie a área da Ocupação e faça
Regularização Fundiária e Urbana (REURBs), conforme determina a Lei
13.465/2017, que diz que assentamentos irregulares devem ser regularizados pelo
poder público municipal.
Ademais, é importante
frisar que a área alvo do despejo coletivo ordenado pela primeira instância do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais (TJMG) contém nos documentos arrolados nos autos
vícios de anotação cartorial, cadeia possessória de duvidosa procedência,
situações nas quais deveria o Ministério Público como fiscal da Ordem Jurídica
opinar pela suspensão desse despejo nas instâncias recursais a fim de
salvaguardar o interesse coletivo em detrimento de interesse particular.
A região na qual está
inserido o perímetro da Comunidade Professor Fábio Alves foi desde o início da
construção de Belo Horizonte, precisamente depois da metade do século XX, destinada
para os Distritos Industriais nos quais o governo do Estado, dono das
terras devolutas, fez concessões de grandes terrenos para implantação de polo
industrial, sem licitação, por preço irrisório e com cláusula contratual que
exigia que em 12 ou 24 meses os empresários deveriam construir empreendimento industrial
que gerasse empregos, mas esta cláusula não foi cumprida. Não obstante a
concessão de grandes porções de terras urbanas, muitos desses contratos de
concessão de terras devolutas urbanas foram maquiados com desvio de finalidade
e por conta de manipulações servem hoje em dia para a especulação imobiliária
com a explosão demográfica na capital.
Desse modo, há fortes
suspeitas de que na maioria dos contratos de concessão de terras devolutas urbanas
cedidas pela antiga CDI (Companhia dos Distritos Industriais), hoje denominada
CODEMIG (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais), na região oeste de Belo
Horizonte, na divisa com o Município de Ibirité, abrangendo a denominada Mancha
Industrial do Vale do Jatobá, foram desviadas as finalidades de construção de
plantas industriais que caíram na mão de especuladores.
Com efeito, demolir mais de 700 casas, sem uma análise profunda da situação fundiária naquela região, provocará uma enorme injustiça como também será um prejuízo imenso. O povo não aceitará despejo, pois toda reintegração de posse é despejo cruel, desumano, covarde e desintegrador de sonhos, histórias e direitos. Regularização, já, da Comunidade Prof. Fábio Alves, pois isto é o justo.
Referências
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica).
São Paulo: Revista dos tribunais, 1999.
PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problematica della proprietá. Camerino: Jovene, 1971.
PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto; FARIAS, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural, 2005.
18/04/2023
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Frei Gilvander: "Ocupação Fábio Alves, em BH/MG, já
se consolidou. Tem q fazer REURBs/Regularização"
2 - Emocionante ver o povo exigir respeito e não aceitar
despejo da Ocupação prof. Fábio Alves em BH, MG
3 - Bairro consolidado: Ocupação Fábio Alves, Barreiro,
BH/MG. Povo não aceitará despejo. REURB-S, JÁ!
4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da
Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5
5 - STJ proíbe despejo de Ocupação CONSOLIDADA como a Fábio
Alves, BH/MG. Povo: Não aceitaremos despejo!
6 - Está consolidada a Ocupação Fábio Alves no Barreiro em
BH/MG. Povo não aceitará despejo. Vídeo 3
7 - 750 famílias querem só um cantinho para viver: Ocupação
Prof. Fábio Alves/BH. Despejo, NÃO! Vídeo 4
8 - Palavra Ética TVC/BH: Ocupação Prof. Fábio Alves, Luta
por moradia. Belo Horizonte/MG. 16/2/19
9
- Com 750 casas construídas, Ocupação
Fábio Alves/BH já é uma Comunidade Consolidada. Não cabe despejo
10 - Lacerda: “Não aceitamos despejo da Ocupação Fábio Alves,
em BH-MG!” Audiência Pública na ALMG. Víd 2
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Ação Direta de
Inconstitucionalidade.
[3] Jurista brasileiro. Foi ministro do STF de 2004 a
2010.